Uma pata com pêlos



       Gosto mesmo é quando chego em casa e vejo ela esperando por mim. Os olhos castanhos, um jeito envergonhado, com uma certa excitação visível em sua face. Ela tende a vir em minha direção toda vez que fecho o portão e então corre para o abraço. Adoro ver a felicidade e a sinceridade que exala em cada cheirada de minha camiseta durante nosso abraço interminável. Ela as vezes parece entrar em um estado estranho de frenesi, e age como se fosse me ver pela última vez - o que me faz me sentir constrangido algumas vezes, mas seguro. Lembro como se fosse hoje o dia em que segurei ela com minhas mãos pela primeira vez, arfava euforicamente e grunhia sons incompreensiveis de inquietação. Ao decorrer do tempo, foi ganhando forma: antes era tão pequena que não conseguia vislumbrar seus pequenos olhinhos escuros, até porque nem abria os olhos direito, mas anos depois tornou-se a pior dos monstros. Sua infância foi um periodo complicado para as almofadas do antigo sofá da minha mãe e os travisseiros da minha cama. Três por quatro encontrava pedaços nojentos de baba escorrendo na lateral do cobertor da minha cama. Toda vez que eu me acordava, colocava a sua cabeçorra aconchegada do lado de meu rosto e ficava suspirando a manhã toda com muita expectativa para que eu acordasse e começasse novamente a festa do outro dia. Ela me causou muitas ânsias de vomitos ao defecar meus chinelos, ou então presenciar sua satisfação ao beber um pouquinho da agua fresca do vaso sanitário aproveitando meus momentos de fraqueza em relação as regras da casa. Quando saíamos e deixavamos ela por conta própria por algumas horas ela costumava fazer decorações por toda casa com papéis higienicos e lixos orgânicos em todas as partes da casa que deixavamos disponiveis para que ela transitasse. As bolinhas de tenis não eram brinquedos para ela, eram comida. Enfim, se eu pudesse apontar as diferenças entre os estragos que o pé-grande iria fazer, e ela dentro de casa, não seriam tão distintos. Depois de alguns gordos anos de ração e comida caseira, ela se tornou fisicamente o pé-grande. Minha mãe me colocou contra parede e mandou eu acostumá-la a viver fora de casa. Foi a queda de seu reinado e a entrada da era que eu chamaria: peludiana. Nos primeiros meses, foi um certo sufoco as noites com ela gemendo lá fora. Aquilo me torturava inicialmente, mas depois começei a ganhar uma certa frieza de comportamento, já que nao teria outro jeito: havia uma guerra psicológica dentro de casa, - lembram da guerra fria? Transfiram isso para uma atmosfera canina e tirem a neve - mas graças a deus, aquilo teve um fim. Bom, tambem me lembro infelizmente, de um outro evento que aconteceu meses depois dessa revolução canina lá em casa. Se eu bem me lembro eu fazia meu ultimo ano no ensino médio e um curso pré-vestibular pela tarde. Como de costume, eu voltava pra casa lá pelo entardecer do inverno brasileiro: eram por volta das 6:30. Minha mãe estava na rua quando cheguei em casa, ela me disse que ela tinha sumido. Nós procuramos ela por toda volta, em todos os cantos, toda rua que tivesse uma valeta gostosa ou algum lugar para que ela se banhasse majestosuamente, no entanto, nada encontramos. Minha mãe falou "A gente espera até amanhã, vai ver ela foi dar uma volta e quem sabe ela volta. Ela já bem grandinha e sabe o caminho de casa". Sempre confiei nas coisas que minha mãe falava, palavra de mãe é verdade absoluta: dona coruja. No outro dia, tive a infelicidade de saber que ela ainda não havia retornado: havia algo de errado. Essa agônia durou um longo período, até que um dia ela surgiu novamente, com vários machucados no corpo molenga dela, seu pescoço sangrando e suas patas ensanguentadas tambem, ela vinha capengand, entrando em casa. O que quer que tenha acontecido, foi com certeza uma experiencia traumática tanto para mim quanto para ela. Mas, felizmente - cansei dos "infelizmente"- recuperamos ela a sua forma natural. Hoje ela ainda é a mesma cachorra de sempre: carinhosa, arteira e fedorenta - devido aos preteridos banhos de valeta. A Preta nunca teve uma vida de cachorro abastado, ela é uma cachorra do ghetto com muito orgulho, no entanto, ela sempre se divertiu e teve várias pessoas para ser feliz pra cachorro. Ela já tem 11 anos e é o amor da minha vida. Preta: eu te amo.

Comentários

Este texto foi escrito em 2009, baseado numa história real. Preta faleceu em janeiro de 2011 em um acidente de carro, e por isso, que sirva de testemunho o meu carinho por ela, assim como a vida sapeca que ela teve.
Moises disse…
Que texto bonito sobre a Preta :)

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