Pai

           Existia um caminho. Meu pai disse que eu deveria tomá-lo com coragem. Não olhar para trás, nem ao menos duvidá-lo por um instante. Que deveriam, as escolhas, serem confiadas com o poder da alma; assim não haveria tempestades devastadoras; nem terremotos mortais; a vida no triângulo iria ser parte da imaginação. Continuei caminhando, mas minha garganta estava seca. Tentei não reparar e lembrei que meu pai disse que, talvez ele estivesse errado: porque todos erram, mas, às vezes, errar é uma escolha e, portanto,  faria parte de quem eu seria. Não haveria problema nenhum se, por exemplo, eu parasse pelo canavial e, esperançoso, como ninguém mais, esperasse um eucalipto arrastar-se para me fazer sombra,  partir-se ao meio e verter de si um pouco de sua água em minha boca. Na verdade, eu não gostava da ideia de um eucalipto locomovendo-se. Uma planta movimentando-se como um homem,  me parecia uma imagem um tanto alienígena. Talvez eu já tivesse perdido a lucidez no fio da meada.  Mas foi isso que me fez rastejar mais um pouco. Pensar naquela anomalia me levou uns pedaços de chão mais adiante. Aprendi a  rastejar como um eucalipto inexistente enquanto meus olhos marejavam um rio que se afastava. Era uma seca braba, minha vida ali era só um punhado de memórias que me atravessavam e a minha imaginação. Havia alguns esqueletos no reflexo do solo enfraquecido, alguns esqueletos que eu ia driblando. Pensei se eram realmente de boi ou de outro garotinho que se perdeu do pai no meio do nada. Uma vez perto da fazenda, no curral do vô, um boi-zebu comeu a Novinha e os outros gados. Uma tia falava que o monstro tinha nome apelidado pelas pessoas da cidade. Eles chamavam ele de "Chupa-as-Cabra". A Novinha mamava na teta da mãe ainda. Ela brincava de lamber  meu braços secos de areia e meu vô me deixava doido para brincar com ela. Dizia que ela gostava de mim mais do que de todo mundo. O pai disse que tínhamos que dar modos para ela, e tratá-la como se fosse um filhote de vaca qualquer. Se fosse preciso a Novinha iria virar comida, porque a seca ameaçava a fazenda do Vô. O medo era grande, porque a senhora, minha mãe, estava de cama, e meu Vô já não falava coisa com coisa e chamava pela falecida. Mas meu pai disse que a gente tinha faculdade ainda pela frente; a gente: eu e meus dois irmãos: Izaquiel e o Iodo. Meu pai não gostava de lá. A sua mãe, minha vó, dizia que ele não era homem suficiente. Meu pai era triste por causa disso. Na caatinga, eu vi, muito impressionado, ele chorou pela primeira e última vez. Meu pai chorou no sertão. Tinha perdido tudo e acabou por ficar com a propriedade do Vô; meu vô acreditava nele. No que, eu não sei. Mas acho que é por isso que meu pai num desistia fácil. Ele seguia. E ele me dizia para seguir. Foi quando me disse que filho de peixe- peixinho é. Ele repetia tudo que minha mãe falava. Ela sabia de tudo, até ficar doente e ficar em silêncio, silêncio igual o de quando não chove.  Nas fissuras do solo eu prendia meus dedos. Se eu fosse um peixinho,  estaria debatendo minha nadadeira caudal, mas meus pés estavam gangrenados e eu me arrastava pela Estradinha da Tristeza. Levantei meu crânio e pus meus olhos contra o feixe do sol. Eu vi uma miragem. Só podia ser ele... mirei com os olhos marejados, baixo 40 graus. Um menino me abraçou pelas costelas e carregou meus restos na parte de trás da carroça... Acreditei em meu pai e deixei parte de mim para trás. Eu fui viver a vida ardida do "seguir em frente", sem esquecer dele e da mãe. Não foi como meus irmãos que apodreceram nas barragens do São José, pouco antes do canavial. Eu chorei ontem por não ter ficado, porque hoje não sei se fiz meu pai feliz; só sei que sofri durante o caminho, o caminho que já percorri.



Comentários

Postagens mais visitadas