Sonhei hoje com o passado

           Acabara de interromper um sonho qualquer. E de fato não me importei com isso, pois era um sonho como qualquer outro. Haviam personagens, uma casa, um violão, que pelo resquício de lembrança que ainda tenho sobre o sonho,  estivera sendo guardado em sua capa, alguém que narrava ao meu lado a importância de um quarto como um eco na minha cabeça, mas tão real quanto ser um dos personagens. E esse mesmo som, embora não fosse um personagem e   fosse apenas uma voz, ecoava em minha cabeça como  correntes de pensamentos  que dialogavam com as coisas que eu sentia. Atendi o interfone - fato que havia interrompido meu sonho - com os olhos ainda optando por permanecer fechados e disse “Alo”.  Era a primeira vez que morava sozinho em vinte e poucos anos. Afastei-me das coisas que sempre fui próximo, acreditando não possuir tantas coisas que me segurassem a elas, o lugar onde eu fundei  meu ser,  criei amigos,  caminhei para o colégio por 10 anos ou mais, joguei bola em terra úmida, rolei em dunas tentando transformar-me em croquete,  brinquei de esconder invadindo o quintal dos vizinhos veranistas... Pensei que seria como todos outros grandes artistas, filósofos  escritores, jornalistas famosos que se deslocavam do interior para tentar a vida na cidade grande. Olhei o mar, dentro de mim, aquele oceano de lembranças. Era como uma enchente, incontrolável e vorás atropelando as intermitências que houvessem pelo caminho. Segurava o pelo de minha primeira cachorra, tão macio e sedoso, e ao mesmo tempo tão vira-lata, e talvez fedido a valeta – afinal ela parecia uma ratão de banhado, não deixaria a lembrança distorcer a veracidade dos fatos. Cherry, o nome dela, que em noites de trovão se escondia de baixo da cama, de baixo da mesa da cozinha, seguindo o padrão clichê da literatura animal. Sim! Ela fazia exatamente isso. Lembro da terra, das formigas que caçava no sol, colocando-as dentro de um pote de plástico. Elas viviam passeando pra todos os lados no quintal, carregando uma folhinha de grama por vezes em trilha. Minha mãe deve ter dito uma vez, mas não lembro ao certo,  que era assim que elas construíam suas casas e se alimentavam. Por isso, desde então, eu resolvi ajudá-las, achei o tal pote de plástico jogado em algum canto do armário do lado da pia e levei-o, descalço, pra frente de casa. Sentei-me ao lado da trilha, com uma das mão arranquei um punhado de grama  e coloquei no pote. Levei  o pote até a rua e preenchi  ele com um pouco de areia. Retornei a trilha das formigas e comecei a coloca-las dentro do pote uma a uma. Tentei ajudá-las a construir um lar para elas  com pedaços de folha da grama do patio de casa. Era o que elas queriam, se sentir em casa. E assim eu cresci, adicionei alguns anos ao meu histórico de imaturidade, revolta pela vida alheia, procurei um sentido para as coisas por um longo período, organizando as minhas experiências de vida, como quem organiza arquivos em uma pasta no computador, ou simplesmente, dobra as roupas e coloca-as no armário. Uma organização sobre a definição sobre as coisas que se estendeu até o final da minha graduação e talvez um pouco mais. Não sei ao certo o por quê, mas foi como uma alavanca que é acionada. Tive um desses momentos que a literatura chama de epifania. Quando as coisas mudam a sua volta, embora continuem as mesmas. E então, como num passe de mágica, pensei ter visto a verdade por uma fração de segundos.  E estava naquele sonho que eu tivera. “Foi engano” o homem respondeu  do interfone. Não prestei atenção muito nas palavras dele,  não se quer estava ali naquela sala, naquele apartamento, daquele dia, sobre a luz do sol do meio-dia, em São Paulo. Estava estupefato, meus olhos começavam a arder. Uma ponta de angustia surgia... era tão feia, tão pouco infantil, tão imprudente criança, a verdade. A vida parecia um lance de escadas, que eu tivera a impressão de subir em todos esses anos, embora nunca tivesse saído do lugar. Corri atrás dela, a verdade. Mas me deparei com um labirinto de memórias. E olhei-a amedrontado, como um cálice no meio do labirinto, um tesouro  e talvez a caixa de pandora. Tinha sido a cama... é, claro, pensei. A cama foi a chave para esses sentimentos irreversíveis. Era a minha cama da minha antiga casa, dos quartos que eu tivera, um bem pequeno, pois nunca tive quartos grandes, quer dizer, no passado. Meus quartos eram cubículos  onde vivia eu e meu irmão dividindo um espaço que parecia mais um campo de batalha. Ambos, fomos sempre individualistas por natureza. Nunca deixe a memória distorcer as coisas que já aconteceram. Ela tem esse comportamento, martirizante, tentar tornar o passado atraente e belo, talvez melhor e mais adorável, quando nem em todas vezes teria sido assim. Ao lembrar de algo tente não intervir na verdade, pois talvez ela não reflita quem você é no presente. E por mais feio que  você seja, e me refiro aos nossos defeitos,  sempre será mais feia a pobre, misera e descomprometida mentira. Minha cama estava naquele quarto apertado, naquele sonho translucido. Cama beliche de madeira, em que deitara por quase toda minha vida. E com a cama, balancei. Mas firmemente resolvi não chorar e fui para a cozinha. Talvez fosse uma paranoia casual. Maldita hora que o  interfone tivera que tocar, e  ainda era o número errado! Retornei ao meu ser rabugento como geralmente sou pela manhã. Humor de urubu. Você ri, eu fico sério. Você fica sério, eu ignoro. Você me ignora, eu volto a dormir. Esse sou eu agora, ou quem sabe sempre tenha sido. Abri a geladeira e preparei um leite com Nescau...  E foi no último gole que lacrimejei, e finalmente, desabei.  E o percurso foi simples e direto. Primeiro, lembrei da cama, e depois o gosto do leite de Nescau, a TV ligada no canal de desenho animado, minha mãe. Minha mãe trazia o leite na minha cama. E esse era o meu ponto fraco. Eu teria preparado o leite hoje. Afoguei-me no leite junto com as lágrimas, pois minha mãe não estava ali, ainda também não havia morrido. Pessoas escrevem coisas assim quando outras morrem. Ela só estava em minha cidade, onde quer que ela estivesse, seria minha casa, meu lar e não estava comigo fisicamente preparando o leite matinal. Olhei o mar dentro de mim novamente, aquele oceano de lembranças incontrolável e vorás atropelando as  minhas angústias por tão pouco demonstrar e expressar amor a quem me amava, como um dever que não tivesse comprido, um tema que não tivesse sido feito, um capitulo de algum livro que tivesse começado a ler, embora não tivesse o terminado, afogado em frustrações internas. E  embora fosse manhã, presumi que esse era o fim do meu dia.


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