A estranha

A viagem era longa, mas as vezes acontece. Alguns pensamentos me ocorreram enquanto observava Annabel cair de algum penhasco rumo ao abismo. Quem poderia achar que a beleza da desconhecida não era vil e perigosa? Na verdade, sua existência  por si só era um gesto puro da maldade inata. Todas eram iguais, mas não ela,  oh não a bela Annabel, que de tulipas era seu cheiro, me entorpecia, removendo a semente boa de terras quase nunca semeadas, e plantando a maldade em meus pensamentos outra vez tão sensatos. Sua gelidez  fazia de sua pele mais suave que a seda; um devaneio descomedido da beleza epidêmica, era seu olhar, um tanto quanto hipnótico, fazendo-me alcançar ideias vultuosas, tornando-me submisso aos instintos mais agressores dentro de mim, oh seu eu pudesse controlá-los ? Se eu pudesse usar suas pernas? Um frenesi interminável havia sido acordado em meu coração sombrio, o despertar da besta, que saliva em ostentação pelo que deseja, que mataria para ter o que mais venera; e por conseguinte que ainda acharia satisfatório usá-la por inteiro a fim de te-la impregnando minha pele. Talvez manter seu corpo no porão. Era úmido, tomado por sombras, mesmo em seus momentos mais iluminados, uma parede que facilmente cederia, uma abertura com uma simples marreta, e a disposição magnificente de seu corpo fino e frágil, com sua beleza preponderante para sempre em mim e sobre meu próprio teto. Retorno ao olhar, oh olhar epidêmico, contagiante, libidinoso; o que lança palavras como adagas eliminando a aproximação das palavras pensadas ou do ser que uma vez entendeu o que era viver em  sociedade. Contemplei-a entrar, se aprumar  no breu de um dos assentos do fundo do ônibus, entrelaçar suas pernas emblemáticas – as quais meus olhos penetraram sem eu mesmo perceber, oh , eu já não era mais eu mesmo,  e quando penetraram-na, tão prazerosamente, ela invadiu meu sistema límbico... e senti-me meio dama-da-noite, meio rosa, meio jasmim e quase inteiramente  tulipa,  refiro-me ao seu cheiro. Retirou  uma cuia de uma de suas bolsas, preencheu seu mate com água quente, um vapor saía da térmica, seduzindo-me ainda mais. -Tentei controlar minhas mãos pressionando contra o braço da poltrona -  E direcionou seu olhar para mim de imensa espontaneidade e pureza, como um veado indefeso, prestes  a se tornar a presa, embora ela nunca tivesse, de fato, me percebido. Velejei pelo que pareceu horas, queria velejar pelo seu corpo, navegar em seu sangue, entrar pela sua iris, despir o mistério de seu corpo e despir o mistério de seus movimentos. Seus olhos arregalados de coruja através do escuro, me fitavam. Ela poderia trabalhar no banco, correndo pelo prédio, informando o cliente os procedimentos de abertura de contas ou num posto de gasolina contar pelo uniforme embora estivesse muito escuro para um ultimato. Parecia ser independente, ter seu apartamento, mulher solteira que sai às 8 pela manhã e chega às 9 da noite do trabalho. Faz hora extra e procura uma alma gêmea em algum site de relacionamentos online. Talvez tenha tentado tarô para achar alguém ou colecionasse pedras acreditando na energia elas carregavam. Me perguntei o por quê de não cumprimentá-la. Mas quando imaginei a suposta situação ocorrer mais de três vezes em imagens quebradas no cerne de minha mente: ela tinha descido. O ronco do motor havia despertado meus sentidos para o que estava acontecendo ao meu redor e a realidade era amarga. Mantinha-me sentado naquele fundo de ônibus, mas ela havia descido e eu não... seu veneno escorria por minhas ideias, sem mover um músculo, gradualmente paralisando-me por inteiro. Continuei no mesmo assento até a última parada, pensei em minha casa escura, o porão sem o corpo da moça, sobrevivendo sem sua beleza e energia vital, o mistério um tanto que sobrenatural, entrelaçando a percepção confundindo-me com uma besta e um homem. Levantei-me para descer e naquela mesma parada, curiosamente observei Annabel, não era a mesma, mas sim, diferente de todas as outras, ali, indefesa, com cadernos na mão, esperando pelo próximo ônibus.


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