No alto do bojo
Éramos dois até então, mas somos um.
Olhei o espelho que não estava mais no quarto. Ele parecia cheio de
sentimentos, afogado em emoções opacas, as quais nunca acreditei, embora
quisesse. Livrei-me dos afagos, abri a gaveta, dobrei-os ao meio, como se faz
com camisas importadas. Em seguida, repousei-os com cuidado, para que não os
acordassem. Eles haviam dormido por muito tempo. Nem lembro quanto tempo. Espanei
o armário da sala para ocupar meus neurônios - não funcionará com as janelas
fechadas, pensei, então as abri. Ouvi falar sobre as límpidas margens dos
oceanos através de um pássaro que repousara no fio. Ele piava a um braço de
distância da janela aberta. Piava alto, no alto do poste. Era o quarto andar
onde talvez eu estivesse. Imaginei as crianças e o tempo passar rápido, toda
vida que pudera transcorrer e a dor de como se elas um dia tivessem de fato
ocorrido. Sem ouvir os sinais, a água batia nos rochedos às margens do oceano.
Era calmo demais dentro de mim. Havia resto de pelos pelo sofá. Livrei-me
batendo neles com o travesseiro. Os pelos, por consequência, flutuavam através
dos primeiros raios de sol. Fazia sol, atrás das nuvens, atrás dos prédios.
Sentei-me na sacada e apanhei meu instrumento. Algumas notas disparadas,
afugentando o pássaro e suas histórias mal contadas sobre um dia num oceano,
que parecia mais um rio, com risos e crianças de um dia que nunca havia
acontecido. Pensei sobre o seu rosto. Sobre a vida que nos foi oferecida por
nós mesmos. Não disse nada, apenas algumas notas disparadas. Senti-o dentro de
mim, no quarto, no vazio do livro, no livreiro empoeirado. Li seu amor de
desdenho, e minhas cordas a disparar. Deveria ser difícil, afinal, talvez o amor
uma vez que entre - convidado ou não convidado -, seja como uma aresta danificada
de um navio de turismo, uma viagem que o destino final é o alcance do fundo do
oceano. Se você já foi, deve ter fotos para lembrá-lo(a) da amargura do seu
vazio. Deixei-me ir pela correnteza... enquanto deitei-me no azulejo da sala,
fitei o abajur. Nada parecia tão convincente quanto a ausência do bojo. Vamos
nos torturando, nos machucando, aos poucos, pra quê?
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