Macaco e os cachorros

   
      Apontar quando ele entrou em nossas vidas é difícil. Mas foi um desses que marcou completamente parte de nossa existência no tempo. E é incrível como esse tempo passou rápido olhando hoje para trás. Macaco era um cachorro esbelto, aventureiro, com ar de liberdade pulsando da  ponta de sua cola fina à ponta das duas orelhas pontudas, de pêlos pretos e aparentemente penteados, focinho de pastor belga e olhos castanhos escuro-tristes. Era um super-herói vestido de cachorro. Transpirava uma mistura de valores. A obediência refinada com os instintos mais primitivos de caça. Se alguém que o conhecera ler esse texto, entenderá a profundidade da verossimilhança que estou tentando passar ao descrevê-lo. Minha intenção é ser fiel aos detalhes. Uma vez que nosso querido amigo, Macaco, optou,  pela sua vida canina, ser fiel com nossa família; nossa casa e principalmente meu pai. Ninguém merece mais a palavra fieldade do que ele.
       Havíamos  na época acabado de perder um cachorro. A Leka ou talvez Leca. Acredito que era início de minha adolescência. A Leka era uma Fila misturada com alguma coisa e muita felicidade. Uma cachorra boba, que por conta de uma doença visceral acabou falecendo nos fundos de casa. A vida de todo mundo entristeceu-se desde sua morte. Era a segunda cachorra que até então havíamos tido. Uma tentativa de recomeçarmos a criação de um novo animal, que no momento de sua inabalável morte, parecia termos fracassados. Macaco foi o começo de um novo ciclo, embora, de fato, cada cachorro tenha sido especial na sua forma. Quando disse que ele optou ser fiel, definitivamente OPTOU é o verbo que mais define sua entrada na família. 
      Macaco morava na outra quadra e já tinha um lar. Um lar que pelo jeito estava desgostoso de fazer parte. Eles mantinham ele como um cachorro de dentro-de-casa. Até o dia que ele quebrou o vidro e veio parar aos cuidados do meu pai na minha casa. Essa perspectiva da história me falta. Não sei se Macaco havia o seguido ou surgido acidentalmente no patio da minha casa. Contudo terminou sendo alimentado e cuidado pelo meu pai, que trabalhava como uma espécie de zelador, entrando nas residencias ao redor de nossa casa e verificando se tudo estava em ordem, acendendo as luzes a noite e pela manhã apagando-as. Além disso, meu pai trabalhava como vigilante noturno em um construção na rua da praia de onde moramos, o Cassino. As noites de acordo com meu pai eram solitárias, frias e inacabáveis. Lembro que uma das vezes visitei ele na construção. Minha mãe havia feito algo para ele comer e resolveu levá-lo. O lugar se resumia a um conteiner, uma TV preto e branco de pouquinhas polegadas e uma cadeira de praia e um cachorro preto ao lado da cadeira. Depois de ter uma conversa com meu pai, o dono de Macaco concluiu depois que o cachorro voltou três vezes para nossa casa, que não entendia de fato o espírito rueiro dele. Era um cachorro livre. Ia pra fora de casa, as vezes desaparecia, ficávamos preocupados, e voltava. Em uma das vezes que ele desapareceu descobrimos que ele estava envolvido em uma arruaça canina por causa de uma cadela de rua. Macaco era territorial. Completamente fiel, obstinado, amigável, mas se tratava do sexo, ele desaparecia. Meu pai ficava divido entre o orgulho machista e a preocupação dos resultados da briga pela fêmea. Macaco intimidava os inimigos, mesmo eles sendo muitas vezes maiores que eles. Brigava com cachorros como se tivesse treinado seus movimentos. Já nos tempos vagos (por favor liguem o som com música clássica) ele caçava passarinhos no quintal. E de vez em quando aparecia abanando o rabo mostrando o que havia feito para meu pai que relhava com ele. Era uma mistura de "veio você não é um gato!" com "coitado do passarinho.". Ele andava por cima dos muros como se fosse um gato,  tinha a habilidades de um gato. Certa vez ouvimos barulho no telhado de casa. Era ele. Como ele havia parado ali? Bom, quem morava ali sabia que a casa da esquina tinha uma escada que dava acesso a um terraço. E provavelmente Macaco teria subido ali, percorrido os telhados vizinhos até alcançar o nosso.
     Era simplesmente um gato, que era um cachorro, e que também tinha seu lado gente, pois, alem disso, ele se comunicava. Ele guinchava  inquieto ao pedir por carinho, insistia nos guinchos caso não fosse atendido com atenção. A cola, o focinho e os guinchos expressavam a faceirice e o desapontamento muito claramente. Não havia duvida nas atitudes de Macaco. Era obstinado e objetivo. Adorava irrita-lo ao rodar a cola dele. Ele pirava, começava a caça-la como se não houvesse amanhã. Abraça-lo e levantá-lo no ar era pedir pra ele guinchar e se refestelar, ficava animado, e devolvia numa mordidinha sem dentes insana. Era basicamente a forma bruta de brincar, e depois ele saia de leve como se não tivesse a certeza de até onde foi na brincadeira. Era um cachorro sensível. Sentia o cheiro de comida de longe. Tinha um faro equivalente ao do Wolverine. Exclusivamente quando havia gambás nas árvores. Nos tempos vagos ficava parado na frente de casa, sentado e apoiado nas patas dianteiras, como aqueles gatos egípcios, olhando o movimento com um olhar calculista. O que lhe aderiu o semblante de gentleman e um ar de xamã da sabedoria quando lembramos dele.  As vezes, parecia ele entender mais sobre a existência do que todas nossas visões de mundo somadas.
       No oposto do seu lado instintivo estavam seus olhos escuros-tristes. Macaco sentia muito. Era perceptível. Talvez esse olhar viesse com revelações que ele não conseguisse decodificar e por isso não se importasse em compartilhar conosco. Mas ele via coisas e entendia elas. Sempre que lembro dele é essa a imagem mais forte. Ele parecia entender mais do que todos nós. O que ou por quê, não sei. Mas o que ele sabia fazia ele agir tão paradoxalmente. Esse alto grau de adaptação, mudança, a opção de vida, do instinto a obstinação. Tudo era resultado do tamanho do tudo que ele sabia. Parecia ser meio triste. Especialmente no final da sua vida, em que fui mais ausente. Ele parecia prever o fim e também ter aceitado o mesmo, e de forma pacífica, um dia, ele optou por nos poupar, e desapareceu. Hoje eu sonhei com gatos, e que morava na mesma casa da infância, e eu tinha medo que o Macaco os atacasse quando as crianças jogassem a bolinha de tênis ao brincar. Tinha medo que ele achasse que fosse pra ele, assim como os gatos e acabasse num conflito. E, de repente, o sonho tornou-se ele. 
         Não sei se vocês conhecem a teoria dos gatos de Erwin Schrodinger, da física quântica, em que o gato no paiol vive e morre no experimento. Isso porque, segundo a física quântica, se houvesse o mínimo de interferência, como uma fonte de luz utilizada para observar o fenômeno, as realidades paralelas do mundo subatômico entrariam em colapso e só veríamos uma delas. Ao meu entendimento, esse é o estado de Macaco, existem duas realidades paralelas, em uma delas ele está bem vivendo em algum lugar fofinho e quentinho. E na outra ele disse bye-bye. Prefiro assim pensar... sem interferir no paiol, deixando as possibilidades abertas para que ele OPTE.  Assim foi, assim continuará sendo... livre. Quem diz que cachorro vive/serve apenas para cuidar do quintal, não vê a alma do animal, Na verdade, condiciona-o a viver o que muitas vezes não é da sua essência. Alimentar não basta. Pro animal levar você (mas levar pra onde? pra onde houver vida), da mesma forma que você leva qualquer coisa que ama, o minimo é amar e viver o animal. É claro que isso não está no manual de 'como cuidar do seu cachorro'. O que eu posso dizer é que valeu muito a pena... meus sonhos estão repletos deles agora, ficam voando sem asas atrás dos medos que percorrem a imaginação do subconsciente; meio anjos, meio guarda-costas, ladrando e afugentando-os; até a hora de minha morte, e isso é reconfortante.


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