Paredes de dentro

Eram onze e cinquenta. Não havia nada que salvasse o dia. Muito menos algum super herói americano. Havia lá fora a realidade, as cidades e as pessoas. Realidade desanimadora para quem passaria o dia afogado em um mundo interior de sentidos caóticos. Estava coberto de sangue o céu, hoje, avermelhado. Não sei se era ainda o gosto do remédio, mas o gosto do dia - nem sabia se era dia - estava amargo. Escondia-se por trás das nuvens determinada nostalgia. Não dormia por noites e mesmo depois de algum sedativos, resistia ao sono. Quando finalmente transmudava-se com olhos abertos para o universo dos sonhos, ainda assim era vermelho o céu que seus olhos viam. Em sua mente esse relógio que trabalhava de maneira própria e não-linear era igual a um tocador de música no modo aleatório: seu tempo escolhia a próxima hora. Ás vezes sugeria que não houvesse uma. Mesmo que um relógio de parede estivesse dependurado sobre a porta em frente a sua cama, alguma parte de seu ser intervia de maneira extremamente lógica inferindo que aquele objeto fosse apenas um brinquedo. Algumas memórias quebradas da infância justificavam a lógica. Ganhou no seu quinto aniversário, ou no quarto, sem precisão exata, um relógio em formato cúbico que se desdobrava e alterava suas cores como um quebra cabeça. Seus ponteiros afiados apontavam para elementos numéricos. Ali. Aquele homem. Cansado de lutar a procura de onde estava naquele espaço e tempo, guardava suas energias para o momento em que esperaria o tempo que fosse necessário; para quando algo ali dentro daquelas paredes acontecesse. Mesmo que esse tempo não fosse chegar ou que o acontecimento não pudesse ser findado, ele tinha esperança. A esperança era esta forca que tornara-se o último fio de sanidade que ele podia recorrer à. Quando olhava para o passado, já não lembrava-se da dor, apenas da pura felicidade. Quando olhava para o futuro via o reencontro dessas formas - sejam lá quais formas - mergulhando uma na outra, como cavalos marinhos no fundo do oceano: leves e despreocupados. Não haveria medo, nem predileções, nem futuro ou passado. Só haveria  eles. Descobertos de historia. De tradições e princípios. Vivendo a imensidão do que são e sentem. Sentiu alguma coisa perfurar sua pele. Mas era comum sentir de vez em quando esses ferrões em alguma parte de seu corpo. Já havia se acostumado. Era quase parte do mecanismo de seu organismo. Outro dia ouviu alguém balbuciar alguma coisa em seu ouvido. Era um zunido agonizante. No final daquela noite - que talvez não fosse noite - lembrou-se daquele som e sentiu o cheiro dos cabelos da sua mãe, sentiu algo molhado escorrer pela bochecha, chorou algo talvez, e um aperto diferente do ferrão em uma parte do cérebro, e então, num átimo, voltou ao vazio. Sentia muito raramente essas sensações únicas. Como se alguma alma tentasse de milhões de galáxias de distância contato. Contudo, tudo era uma reação de um dos sinais que seu corpo transmitia. Não havia um caminho para percorrer. Sentia-se como um feto em formação envolto a placenta. Encolhido num mar escuro e liquido do espaço. Vagando num tempo escuro e incontável. Feito de paredes viscosas e algumas memórias. Em outro evento seu corpo cogitou a dizer-lhe mais alguma coisa. Foi um momento eletrizante quando em uma de suas tardes de Setembro sonhou. Sonhou que sonhava que dividia o quarto com um bebê que falava.  O bebê estava sobre a cama ao lado dentro de uma pequena redoma de vidro. O bebê contou-lhe a historia de um homem que dormia um sono profundo. Com um dos seus dedinhos apontou o ponteiro imóvel do relógio. Era como se o bebê tivesse toda percepção invejável de se ter. Seus olhos perspicazes viam luz. Seus ouvidos atentos provavelmente ouviam o som do bater asas dos pássaros e o latido dos cães em algum lugar distante do prédio. Suas mãos tocavam a redoma. Alem de tudo isso, ele era capaz de comunicar-se através  dos gestos, do sorriso, do levantar de sobrancelha. Que terrível inveja cresceu da boca do estômago a pressão dos nervos da cabeça neste homem. Uma dor incontrolável o submetia a sufocar a imagem daquela criança saudável com parte de toda sua força restante. Pensou com tanta forca que fez seu sonho tornar-se em escuro. Sua mãe lhe trouxera flores. Uma única rosa branca na verdade.  Ela colocou-a dentro de um jarro azul de plástico sobre uma mesa simples quadrada ao lado a porta. Tirou-a de uma colina ao lado da fazenda de seus pais. Costumavam ir todo verão. Havia um riacho. Um curral. E uma colina. No riacho, as crianças banhavam-se enquanto os adultos falavam sobre o futuro. No curral, as crianças apelidavam os animais e amamentavam os porquinhos. Na colina, as crianças colecionavam rosas brancas para levar pra casa. Embora não viesse aos seus sentidos, algo lhe dizia que ainda restava o que sentir. Seu impulso de vida era maior do que qualquer outra força. Seu pai colocara um quadro na parede ao lado da cabeceira de sua cama. Nesse quadro havia as fotos de alguns amigos. Da cachorrinha que dormia em seu quarto ainda filhote de nome Zora. Bilhetes. Mensagens de esperança. E um recorte de jornal sobre um acidente de carro. Numa fatídica manhã de uma primavera, acordou invernal. Sentiu uma suave sensação humana pela primeira vez depois do acidente. Era como se a palma da mão de alguém escorregasse por sua pele. Uma sensação de afogamento, e um suspiro lhe passava cortando o pescoço. A imagem aterradora do esquecimento lhe foi por um instante um pavor eterno. Até o volúpico abraço de saudade. Alguém que apenas sabia que sentia falta. Lembrou-se do sonho do bebê novamente, e de como havia esquecido da parte em que seus pais o retiravam daquele universo de vidro enquanto ele ria e grunhia sons estranhos de felicidade. Sentiu seu coração pulsar como um lampejo no entardecer: um batimento cardíaco como um flash solitário e intenso na treva. Seu pai nunca apareceria para apanha-lo daquela maca. Exceto se revestido em penas. Ele havia se ido. Se voltasse, talvez viesse como um anjo ferido pelo acidente de carro que o levara cedo demais. Seu padrasto provavelmente estaria viajando a negócios. A sensação das mãos deslizando pelo braço aumentava. Pareceu segundos todos aqueles meses, até sentir a consciência emergir. Pensou ser um anjo torcer-se em desespero no teto do quarto branco, mas as chances e de que eram mosquitos. Não os distinguia bem. Mas existia uma claridade. Houve um barulho da porta encerrando o burburinho. E as maquinas trabalhavam. Não havia algo além da profundidade dos sons dos equipamentos médicos ressoando em seus ouvidos. Estavam na janela. Seus pais, seu tio, sua irmã. Sua cachorra gorda já envelhecida. Estavam do lado de fora do quarto. Observando. Sentou-se na cama. E observou as paredes de dentro. Da janela via as nuvens do que parecia ser o vigésimo andar, e o mundo ali, do lado de fora... ainda existindo acima das cidades e pessoas. Ele notou a presença daquele homem, mas não trocou muitas palavras. Afinal, não era preciso. Tudo já havia sido dito.
- Senti saudades das panquecas. Sentiu muita dor?
- Você sentiu?
- Acho que eles sentirão mais. Foi tudo tão rápido, embora tenha parecido...
- Precisamos descansar.
- Sinto a mesma coisa.
- Sentimos.
Os dois subiram na cama e cobriram-se com um abraço reciproco.
Os médicos saíram da sala com a noticia. "Dormiu." E dentro da sala o relógio tocou o meio-dia.

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