Fio

       Fios. Dentro de cada uma de nossas cabeças, embora não seja visível, existe um emaranhado de ideias, acervos de historias e despertares de emoções. Cordões. Ideias essas que em uma reação química em cadeia reagem sobre nossos sentimentos tornando-os mais ou menos intensos. 
      As ideias mais felizes trazem-nos a mesma sensação de que o tempo escorrega por nossos dedos, como a areia fina da praia de São Vicente, nos lembrando que tudo é passageiro, mesmo que permaneçam ate o fim das vidas, sejam elas ideias, sentimentos ou pessoas. Já as ideias mais tristes, as desimportantes, quando não são traumas e nem fraturas irremediáveis em nossos corações e corpos, possuem um prazo de validade. Elas se  esmaecem como as cores de uma roupa que se desbota em um ano de uso ou dois. 
     Dentro de nossas cabeças, estão dois fios condutores invisíveis que nos levam de encontro ao outro - inevitavelmente como o ima magnético e seu painel de fotografias quando estão próximos, juntam-se em um abraço apertado, uma atração intrínseca da natureza de ambos - como se já tivéssemos nascidos ligados por esse fio, e ele nos levasse ao ponto em que tivesse havido nosso encontro. 
     Naquela noite, naquele céu, ao redor daqueles prédios, sentávamos, eu: imã, e você: painel de fotografia. Te pendurava frases, te comentava em notas de papel os meus sentimentos, e te fiz sorrir, te enchi de fotos, te misturei aos meus amores, meus amigos e minha família. Estava gelado aquele fim de tarde mas era o terraço e comíamos  um picolé de chocolate. Era domingo e eu já te amara. Não havia mais outdoors pela cidade que não houvesse imaginado seu apelido escrito no lugar das marcas de roupa. E veio a rotina, o riso e a descoberta de uma outra forma de viver, mais limpa e aberta. Ate o dia em que percorri a rua  em que andávamos subindo o morro, a mochila pesada e você me empurrando porque tinha dores nas costas. Mas não a vi escurecer... Te contei meus anseios e você como em um sopro deixou-se ser soprado, a cada poste que era soprado para longe, mais escura a rua íngreme ficava... distante... Eventualmente todos eles, sem exceção, apagaram-se,  e já não era mais dia, e nem dia era mais dia sem você.
      Meus olhos marejaram, mas não voltou. O fio sobre nossas cabeças já não estava lá também. Ainda que eu escutasse a colher de metal e o cheiro do seu café, você não voltou. Não era sua sala, nem cozinha, não era o jogo de cama,  e você não voltou.  Não era mais a rua, nem era mais o cheiro dos pães de queijo e nem seu abraço, não voltou.
       Quando a noite do parque caiu sobre mim eu entendi que havia me Perdido. Talvez o sopro fosse apenas uma invenção de justificativas para registrar o seu desaparecimento.  Era fria e verde escura.. Algumas estradas, arvores e um lago de aguas dançantes que já não dançavam mais. No parque sem placas, sem o fio, eu me perdi. Não havia a espera, nem a conversa, as bicicletas ou os triciclos, talvez rostos borrados, assim que ficam as pessoas desimportante depois de terem suas fotos editadas - talvez rostos tenham sempre sido borrões.
    Apenas esse medo do Escorpião que eu tanto temia reencontrar pelo caminho. Racional, pragmático, estável, atemperado e imprevisível. Que se a vida Apertar-lhe os nos do sapato, seu ferrão inevitavelmente lhe ocorrera, e afogaram-se os dois num rio de uma margem que nunca será alcançada.  A vida é... Mas lembrei de sua fala, da promessa e do carinho, e continuei a caminhar. Foi quando inesperadamente a estatua do menino e o porco  encontrei, aquela que você tanto falava sobre, e eu nunca havia percebido.  A afaguei como quem acaricia seu animal de estimação. Sentei na frente da estatua e a admirei - pois me trouxe você em um feixe de lembrança. 
      Das ideias surgiriam emoções e das emoções  ressurgiria o fio que acendeu-se novamente, com muitas falhas e pouca luz. Mas ele surgiu... E isso bastava. Estava no ponto de me levantar e sorrir. E eu sabia que na outra extremidade  do fio estaria você... E apenas  isso me fez sentir melhor. O fio... 

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Comentários

Anônimo disse…
Muito bom o texto.

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