E o tempo levou

       Minha mãe dizia que quando eu nasci  minha primeira expressão não havia sido o choro. Ela dizia porém que, de alguma forma, meus olhos eram tristes. As semanas passavam e meus olhos permaneciam assim, divididos entre pena e dor. A impressão do meu espírito preocupou mamãe por um tempo pois minha alma não parecia estar  em meu interior mas na expressão do meu rosto, desaguando pra fora de meu olhos  de bolinhas de gude. Minha respiração também me denunciava, com suspiros cansados e sem esperança. Acho que minha mãe, no início, tinha certo medo. Uma alma incomum devia andar em algum lugar estranho, sombrio e indesejado antes de penetrar meu corpo. Havia muitas coisas que ela não entendia, mas seguia adiante apalpando meus dedinhos gordos e conversando comigo como se eu fosse entender alguma coisa. Se eu estava com fome me encolia lacrimejante com o polegar na boca. Se estivesse com muita fome mantinha meus olhos arregalados braços e pernas esticados como uma estrela do mar. Não seguia o protocolo dos outros bebês que quando se alimentam voltam a sua vida de sono ou sorrisos.  Permanecia muda, olhando fixa pra um dos cantos do teto, com um olhar  ainda triste. Mesmo após as urgências fisiológicas meu rosto dedicava-se a tristeza. Todos os exames já haviam sido feitos. Mesmo assim os pediatras não puderam dizer o que era. Mesmo realizados um número razoável de diagnósticos distintos, ninguém encontrou uma resposta para o que eu sofria. A conclusão de minha condição foi: a menina é triste.   
Anos mais tarde, no natal de 87, meu pai, na tentativa de salvar seu relacionamento com minha mãe,  trouxe uma TV a cores pra casa, porém o presente não teve o efeito que ele esperava -  o relacionamento dos dois não se arrastaria por mais um ano. Meu pai não entendia a amargura e rigidez da minha mãe. Reclamou da falta de sexo. Da falta de afeto. Da falta de comunicação. Mas nada adiantava. Na verdade a TV acabou por atrapalhar o pouco de atenção que meu pai tivera antes da separação e de sua partida. No ano que sucedeu a saída de papai de casa, minha mãe percebeu, contudo, que aos poucos meu rosto foi ganhando um contorno diferente. Os lábios de minha boca se estendiam levemente para as laterais quando o Coiote caía em suas próprias armadilhas... TNT. Sabendo da minha preferência pelo vilão atrapalhado, ela resolveu comprar um video cassete. Assim, gravou o episódio para reprisar o estímulo. Colocava pelo menos um vez por dia. Lembro como se fosse ontem, e nunca houvera meus lábios repousado novamente, pois minha mãe, pela primeira vez, recuperava as forças da ida de papai. Sua separação não fora resultado de ódio por  aquele homem. Era um homem bom e que a amava, por isso havia perdido uns quilos - eu me perguntava. Por outro lado, eu me sentia responsável e decida de manter-me aparentemente feliz, pois entendia que minha mãe andara desnutrida da felicidade. Algo que, infelizmente, por hora só eu poderia então lhe entregar. Essa era uma vida real, a qual eu não poderia fugir. A vida em que a felicidade da minha mãe dependia da movimentação aparente do meu humor. Um centimetro do músculo da bochecha  abaixo da face. Eu tonaria minha mãe em um zumbi na frente da televisão. 
Na adolescência quando os jovens possuem mais privacidade, pedi que batesse ao entrar no quarto. Minha mãe desconfiou de minhas intenções com ela, de que tudo fosse mentira e que eu estivesse esperando esse momento oportuno para fitar o teto e olhar a rua sem fim, debruçada na janela do meu quarto. Mas respeitou meu pedido. Ela estava certa, sozinha eu poderia ser eu mesma.
      Já estava na hora do amor bater a porta. Meu emprego me deixava exausta. Sabia que se nao falasse qualquer coisa, minha mãe contemplava romances. Acho que sentia falta de papai, que não falhava em mandar uma quantia razoavel para ela e para mim. Meu pai visitava de vez em quando  com sua nova esposa. Era um outro homem. Sua mulher não era como mamãe, vivia perguntando coisas  e massageando sua perna enquanto sentávamos no sofá para conversar. Minha mãe costurava, lia gibis e livros religiosos. Vendia marmitas para o bar do Lau, na esquina de casa. Distrações para deixar de pensar que talvez eu ainda estivesse descontente. Pensei em minha mãe e eu em algo que ela gostaria que eu fizesse e que achasse que fosse me fazer. Pesquisei sobre causas da felicidade na internet na escola. E então descobri que as pessoas gostam de ser necessitadas e requisitadas. Que gostam de flores. Que ficam felizes ao ouvir músicas que possam dançar. E que são felizes quando amam. Por isso entrei em um chat. Um desses de encontros e cidades. Conheceria alguém proxurando alguem para amar. No jantar, antes de ir longe demais com alguma paquera, perguntei se ela ficaria triste se eu amasse um homem.  Ela me respondeu que queria me ver feliz e que isso era o que importava.
A procura durou mais uns quatro anos. Mas ele bateu a porta da casa de minha mãe. Ficou hospedado em um hotel na nossa cidade. Não era daqui. O homem era bobo. Parecia a mulher que andou com meu pai  por um tempo, mas mais firme e dono de si. Viajei para São Paulo dois meses depois. Estava semi-casada com ele. Não era nenhum amor nacionalista, portanto não estava forjado para o fracasso. Quem diria,  eu, aos 25 anos, com meus cabelos dançando  ao som do ronco do motor. Voltavamos de uma festa, que não se esquece quase nunca. A vida era mais fácil agora que já entendia onde a estrada iria terminar. Eu sabia agora qual lado do céu eu veria o amanhecer mais uma vez. Sabia que entre a chuva e o sol eu tinha muitas possibilidades. Os prédios ficavam pra tras enquanto voltavamos para nosso lar. As imagens daquela abenida, me faziam pensar que eu pudesse, de fato, sentir-me livre para escolher meus olhos e o movimento dos meis lábios. Parecia que eu vivia ali cenas  apropriadas de algum filme de romance. O sol irradiante atravessando como flechas por entre as construções e ele me tirava daquele convívio desarmônico que eu me submetia comigo mesma. Pensei. Eu estava isolada e não precisava de mais nada ou ninguém. Um troco ou dois talvez. Nada aqui parecia simulado. Pela primeira vez em muito tempo sentia-me livre, flutuando como penas de travesseiro que me encolhia para dormir no colo de minha mãe. Fundíamos a existência de independência emocional e desligamentos. Ele era como eu. Eramos um tipo. E isso faria-nos girar como bondoleiras coloniais. Dominávamos a cidade ou assim era o que meus sentidos comunicavam ao meu corpo. Pulsões elétricas navegando em meu corpo e uma onda de calor que começava  em minha nuca e deslizava pelo meu antebraço que descansava na porta do carro. Isto era o gozo que me habitava, como uma criança que nunca o teve desvinculado de qualquer violência. A violência do desejo. Me sentia tão culpada e responsável por algo que nunca acolho. E isto era o que eu causava nele: tremores de adrenalina. Era como se os olhos dele esperassem isso de mim repetidamente. Embora eu esperasse que ninguem esperasse mais nada. Ou tivesse a música me reafirmado que esse olhar seria algum tipo de significado. Um significado invisível que na verdade se traduzia em correntes pesadas amarradas ao coração. Seus olhos e suas mãos pequenas de dedos gordinhos vibravam com minha presença. Eu não sei se era a bebida ou a velocidade da metropole sendo deixada para tras. São Paulo tinha vistas lindas, eu pensei. Sera que elas esperam algo de mim? Nos primeiros meses se resumiu a presença. A presença era uma evidência pra ele, ou talvez uma grande ansiedade: dias efusivos marcavam o horizonte daquelas serras enquanto descíamos para praia. Senti um apito no ouvido, acho que esta parte da estrada estamos mudando de altitude. Teriamos que esperar o apito se fossemos voltar da baixada, isso me perturbava nessas viagens. Um sinal de começo, fim e espera. O mundo acontecia enquanto nunca teria me sentido mais fixa e rígida na vida. E da apreciação lúdica daquela troca de energias, eu enchia-me de esperanças novas. Eu tinha o desejo e a esperança de um antecipado e praticável futuro em que o presente fosse habitável e pleno de ser - ou talvez tinha optado por esquecer de minha mãe e de como ela estaria lidando com suas relações sociais no asilo. E, portanto, parte de mim estivesse tentando negar a vida que era minha - de rosto triste decorada de pena e dor.

Comentários

Anônimo disse…
Muy bueno!

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