Carro da morte

O despedaçado e humano coração de Chan não admirava a violência com que acusava a constelação de Chickau por sua fraude poética. Ele era jogado para fora da sua cabeça quando o barulho das celas se arrastando cortava o silêncio ecoante do corredor. E como num estalo, regressava seu corpo e alma à realidade indesejada. Chan estava sem muitas opções: respirar as suas ideias repugnantes ou vigiar os guardas que vigiavam-no para cumprir o destino fatal de sua mortalidade, continuar aumentando o número de estrelas que iluminariam o céu escuro das noites do sul da Ásia. 

 Apesar de não ser religioso, Chan descansava seus cotovelos no joelho com as palmas das mãos encostadas, os dedos cruzados e unhas roídas, rogando a prece de uma apreensiva mudez. Quanta disciplina havia em dominar o silêncio, que deveria haver um Deus só para ele! Viviam, no mergulho do onírico silêncio, onde o futuro e o passado simultaneamente contornavam os arrependimentos. Ali, eles se encharcavam das ideias sobre o que ainda gostariam de fazer lá fora, onde sonha-se haver vida. No pescoço, um deles carregava uma pequena cruz, simbolizando o governo democrático. Com a regata suja esticada para baixo, o outro deslizava os olhos sob os retalhos de páginas de papel cheio de notícias preocupantes sobre a inflação do país; esses eram sua cama no canto da cela. A situação miserável era a de quem paga 20.000 yuans pela ambulância atrasada, enquanto o mundo, desde o começo, já ardeu em chamas até suas pontas. O crime era um assunto somente tratado entre os presos e os deuses. Eles inalavam a imensa diversidade de poeira, bactérias e vermes do cosmos da jaula e era assim que, empanturrados, Cronos os engolia – o tempo, por ali, era uma noção ignota.

 O suor escorrendo do cimento e fervendo do centro da terra, num incêndio invisível que nem Hades suportaria. Em torpor, por vezes, o tempo parecia sobrar para escrever um novo épico latino; ora parecia que a raça humana acabaria dentro das próximas 48 horas e tudo se tornaria inútil e aforme assim como o manto maciço que era o socialismo, o uso das ambulâncias e a veiculação dos jornais. Com sua experiência de sobrevida, Chan percebia que viviam em um caixão coletivo cheio de incrédulos e desgarrados. Ser preso era ser enterrado vivo, aguardando a próxima odisseia de 250 passos para alcançar o mais próximo àquilo que teriam os deuses: a liberdade do jardim carcerário.

 Precisou de dois meses até que Chan aprendesse a ver a vida como um enlatado e dentro dele seus componentes, seus químicos e a verdade sobre o que poderia viver. Não houve chance para sair da caverna, aquela parole que todos conhecem alimentaria apenas uma fantasia cuja frustração não valeria o tempo de imaginar. O jardim carcerário, o assento menos assimétrico do refeitório aos sábados, as formigas passeando pelo asfalto entre os refeitórios e a dois quarteirões, três ônibus que passariam no fim da linha. Tamanho era o tempo que se arrastava, que reorganizou seu mapa empírico, acrescentando-lhe um compartimento de suas ideias para a vida que viveria os seus colegas de grades. Por sobrevivência, o espaço sentia-se menos obsoleto que os seus camaradas. Animalizados a cada ano que passava, Chan percebeu que se tornavam menos sensitivos às preocupações civilizatórias, em especial o asseio. 

 Daria um livro cada um, mas Chan não estava certo sobre o tempo de vida que ainda teriam, a certeza que tinham era a incerteza. Enquandrou um dos seus colegas de cela com seus olhos miúdos e cautelosos. Fitou o buraco do respiro, como chamavam uma pequena fresta de ar no fundo da jaula, e viu um relâmpago cruzar como aviso a metade de duas nuvens pesadas. Chan sabia que Deus não ficaria contente que estivera criando novas histórias, pois ele sabia que todas elas contam alguma coisa que não devem. Porém, Chan era um bom contador de histórias e estava determinado a adiciona-las as histórias dos objetos essas novas, ontológicas e deformadas histórias sobre os seus camaradas. 

 No começo, havia o caos. O homem parrudo de olhar distante parecia uma alegoria a isso. Seletiva, a imaginação e sua retórica que lhes conta, fazia-lhe questão de ressaltar: ele era o pior e menos impiedoso dentre os presos. Não havia justificativa moral que defendesse seus atos. Empobreceu, o pobre estrangeiro – cujas manchetes escreveriam “usuário de drogas em Chickau comete 8 homícidios” . Foi ele que, por causa de um roubo de galinhas de um frigorifico, atirou em todos policiais e recepcionistas na estação policial. De repente, um relâmpago iluminou a prisão. 

 O outro estendido ao chão com cheiro de urina, não era bom em obedecer regras. Chan sabia que na infância, esse menino ia açoitado de casa pelo pai para ser acoitado na escola pelo professor; e quando sobrava tempo, com o dinheiro do pão do pai, passava para comprar flores para deixar no tumulo de sua mãe. Mais tarde, era acoitado novamente pelo pai, que faleceu. Sua vida não foi feliz por causa disso: internado conviveu com meninos que o açoitavam. Nunca perdeu sua sensibilidade e nem visitar sua mãe, virou florista. Porém, em um dia cinza, as nuvens fecharam os ceus, e toda agua parecia afundar a cidade. Foi nesse dia chuvoso, que viu um cliente agredir seu filho na loja com a bengala por causa de sua desatenção. Foi quando ele resolveu dar ao homem de meia idade um presente: uma rosa vermelha cujos galhos e espinhos haviam sido envenenados. As autoridades não demorariam invadir sua casa de 20 m², que alugava logo nos fundos da sua loja. 

 Sorrateiramente, Chan fitou o homem agarrado às grades cujos braços contornavam as barras em um gesto apaixonado. Seu ombro era uma espécie de travesseiro. Ele vivia de suas sacolas de alimentos dados pela comunidade já há um bom tempo. Havia sido detido há mais de 3 anos, incriminado por tráfico de drogas no parque central do Chickau. No meio de algumas árvores, ele estendia a mão aos viciados, que o seguiam como discípulos. Naquele dia, ele ia escrever um poema, pois estava dilacerado, e a poesia era a quem poderia entregar àquela vida miserável de violência e impunidade sem ser julgado. Em uma das vezes, ele se prostituiu. Pagavam bem. Mas agora só lhe restara estar encolhido fazendo histórias com o resto de fio de imaginação. 

 O último deles estava perto da janela gradeada no outro canto da cela ao lado da moldura de uma pintura decadente. Ele rasgou o silêncio e perguntou a Chan “Você preferiria liberdade ou imortalidade?”. Os outros olharam em direção a Chan como se suas palavras fossem valer alguma coisa ali. “As pinturas me lembram Dorian Gray e a sua ousadia em resolver os seus sentimentos. Abraçar a dor e a matéria da qual a vida é feita e sorrir para Deus.” Houve um silêncio e Chan não teria qualquer resposta e observou que o outro não esperava uma resposta se quer. O homem quebrou o silêncio mesmo assim “sou professor. Eu lembro de você na sala do Sr.Kollman”, o silêncio seguiu. 

 Chan não se lembrava do homem, afundou-se em medo enquanto a chuva e a tempestade pareciam ter ganhado volume. Então, Chan pensou que era insuportável negar quem se era e extasiado gritou “Você se lembra quem eu sou?!”. Todos de repente se levantaram atônitos e assustados como se estivessem dormindo ou como se nada daquilo fizesse sentido. Chan rolou seus olhos para suas mãos e todos voltaram a suas posições. “Quem eu sou?” – ele se perguntou baixinho. 

 A fim de receber uma educação inglesa e esquecer a violência, a fome e o abandono de Chickau, Chan foi morar com seu tio muito cedo em Hong Kong. O problema é que ele não lembrava muito bem de muitas coisas mais. E de repente, no reflexo da urina, Chan talvez recordou-se, “Eu sempre quis cuidar dos outros, tratar os outros e contar-lhes novas histórias; curá-los com outra histórias”. Um outro relâmpago iluminou as celas e Chan e os outros foram acordados e levados em fila pelos corredores. Talvez fosse a hora de jantar. E ao olhar para os lados, durante a caminhada no corredor, foi reconfortante ver que, aparentemente, eles não estavam sozinhos nessa vida fatigada. Chan entendia que aqueles olhares eram de pobres coitados deixados pro carro da morte. Aliás, havia todo um incentivo comercial para os corpos de prisioneiros de Chickau. Era uma estatística simples 25% restauravam patrimônio público em troca de arroz, pão e laranja; outros 75% encaminhados para o carro da morte. Você não queria estar entre os 75%, mas mesmo se tivesse cometido um roubo, porém, você poderia, pela indiferença qualitativa da justiça, estar. Mas isso era o que ficaria entre os presos e os deuses – e talvez uma parcela muito especial do governo. 

 E ali estava ele, senhoras e senhores, na frente dos olhos de Chan, o jardim carcerário. Dessa vez, porém, ele parecia diferente. Talvez não fosse quarta-feira. Talvez fosse uma visita do tio, que não lembrava o nome nem o rosto, talvez o tom agúdo de sua voz. Talvez estivesse sendo levado para o tribunal; seus músculos estremeceram como os de uma criança de 9 anos quando vai ser punida por algo que fez errado. Entretanto, evidentemente, o jardim estava diferente. Chan atravessou um corredor que conduziu-o a um tunel que nunca havia visto antes, seus colegas olharam-no, e sentiu seu colega acariaciar sua mão. Ao sair do túnel, seu coração estava confuso. Mais homens surgiam a partir de uma outra bifurcação. No centro do pátio, uma vã aguardava enquanto um homem era retirado em uma maca. Um militar gritou algo como “ [...]estamos com um problema”. Então, nos levaram para um onibus, nos enfileiraram e fizeram-nos ficar amarrados no assento. Outros homens entraram e eram mais cinco. Pensei ter visto em reconforto os colegas de minha cela, mas pela primeira vez percebi que como a humidade da cela eles desapareceram no caminho. No interior, as filas de assento horizontalmente prenchiam o meio do veiculo. À frente das cadeiras, pequenos buracos que deixavam entrar a iluminação do exterior. 

 Mesmo sem conhecer a história desses homens, Chan sabia que não haveria inferno para eles, nem castigo maior do que viver para eles. Os deuses responderam a sua ofensa e ao atrevimento e chamaram-o de Prometeu. Chan pensou que na melhor das hipóteses seu orgãos seriam doados à alguma moça gentil. Segurou as mãos dos outros homens que choravam, cogitando se eles teriam algum pensamento no qual se apegar, mas não os reconheceu. “Eu sou prometeu”. 

 Dos buracos, pequenas circunferências de fuzis começavam a se instalar, como se estivessem desconfortáveis por se meterem em lugares tão constritos. Dois homens atrás, olharam-se a tempo para dizer “[...]eles não poupam nem os doentes. Ninguém quer pagar por eles”. Enquanto a voz do tio de Chan soava como uma flauta navegando o ônibus escuro “Há comida no congelador, mas não a ofereça para os ratos [...]”, eles começaram os tiros.

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